Doomsday Clock, este é o nome do artefato sinistro. Em português, Relógio do Apocalipse ou Relógio do Juízo Final. Trata-se de uma simulação temporal em que ameaças de grande monta e alcance à sobrevivência da espécie humana fazem acelerar o ritmo a que se chegará ao fim, calculando uma data provável, ou a distância que se está da meia noite (momento da catástrofe global). É mantido e atualizado por um grupo de cientistas da Universidade de Chicago desde 1947, inicialmente considerando a ameaça de extermínio decorrente de possíveis detonações nucleares. Atualmente as atualizações consideram não só o risco nuclear, mas também o ambiental, o das práticas terroristas e os relacionados a efeitos colaterais dos avanços no campo da ciência da computação (como inteligência artificial, por exemplo).
Como se pode perceber, há décadas cientistas dão por certo o fim do mundo. E monitoram os acontecimentos para terem uma ideia de quando será. A distopia, portanto, não grassa apenas na ficções literárias e cinematográficas e na pregação religiosa. Distopia que é nome novo para milenarismo. Milenarismo que é um modo de encarar a vida na Terra que considera o extermínio inexorável, permanentemente pronto a acontecer; que teve origem na crença da volta de Cristo no ano 1.000, dando início a um novo tempo (o reino de Deus na Terra).
Ao milenarismo subjaz uma noção de retorno ao tempo justo, bom e belo, estabelecendo-se sobre as cinzas dos tempos precedentes, iníquos, maus e horrendos. Na transição (no dia do Juízo final), bons e maus são separados para que sejam respectivamente recompensados e punidos. Isso não acontece com a ideia de distopia, que concebe um mundo ao avesso do ideal, ou utópico. A referência do milenarismo é única – a Bíblia, enquanto a utopia tem várias, geralmente obras filosóficas e sociológicas. O próprio termo deriva de uma obra de Thomas More (1478-1535), escrita em latim em 1516: De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia (Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Utopia).
A sensação geral nas décadas iniciais do segundo milênio não é de que uma utopia está para acontecer, mas de que a distopia vem caracterizando o trajeto rumo ao momento final, catastrófico. A esperada Era de Aquário (em substituição à de Peixes), oportunizando uma Nova Jerusalém, parece fadada ao fracasso.
Confuso, desorientado, sombrio, ameaçador: assim parece o mundo. As notícias, que hoje correm mais rápido do que nunca, com detalhes que os meios técnicos do século passado nem imaginavam oferecer, chegam, diariamente, às centenas, milhares, raramente alentadoras. Onde quer que esteja, uma pessoa minimamente antenada fica sabendo de numerosas devastações urbanas em decorrência do desarranjo climático, de epidemias, de guerras persistentes e altamente letais em vários pontos do planeta, de desentendimentos políticos globalmente desestabilizantes a partir de posicionamentos ideológicos absolutamente retrógrados, de comportamentos individuais e coletivos que um cristão pode facilmente atribuir a manipulações do Anticristo. E essa pessoa sintonizada com os acontecimentos, primeiro, conclui que os homens se entendem cada vez menos, entre si, e caminham para uma luta fraticida que poderá ser a última, pois não restarão sobreviventes; e que ela, essa pessoa de olhos abertos para seus arredores, acorda, a cada manhã, sob uma ameaça imensa sobre a sua cabeça, levantando-se não para ir em busca de seus sonhos, mas para suportar mais 24 horas de pesadelo.
O quotidiano, entretanto, apesar de tudo, transcorre não tão sanguinolento nem tão profundamente desalentador como aparece na profecia milenarista ou distópica, pelo menos para aqueles não diretamente atingidos pelas catástrofes, que a elas assistem como que de camarote. No quotidiano vivido, todos põem a mão na massa, lutando para sobreviver e agarrando-se a alguma alegria, pequena e passageira que seja. E vão sobrevivendo, a esperança persistindo na condição da última que morre. O fim do mundo pode estar próximo, mas não será amanhã, nem de manhã nem à tarde nem à noite.
Sim, o mundo verá o seu fim. Mas o que se entende por mundo nessa afirmativa? A Ciência admite a derrocada do universo (o Big Crunch, ou colapso sobre si mesmo do universo que se contrai devido à gravidade): vai demorar um tantão. O sistema solar tende a desaparecer com esgotamento da energia da estrela que lhe dá nome: vai demorar um tantão um pouco menor. A Terra pode ser destruída antes disso pela ação humana (excesso populacional, exploração acelerada dos recursos do meio ambiente, guerra nuclear): vai demorar um tanto. Nesses três casos, está-se falando do mundo físico, dentro do qual a realidade social (coletiva) e psicológica (individual) do homem se coloca.
No que tange ao fim do mundo socio-econômico, político, cultural e psicológico a que se deu o nome, como ponto de chegada da História, até os dias atuais, de Modernidade (a Pós-modernidade correspondendo à Baixa Modernidade), este mundo caminha, sim, para o fim, a passos largos e rápidos. O que virá depois, ou melhor, o que já está se colocando em seu lugar, é não algo incerto, mas de algum modo um pouco sabido: é alguma coisa como o pós-humano, entendido como uma realidade em que a tecnologia propiciará a existência de seres humanos cujos comportamentos, atitudes, valores tendem a ser bastante diferentes daqueles construídos (ou conquistados) ao longo de séculos de avanços técnicos sob, digamos, controle de uma visão de mundo ou filosofia a que se deu o nome de Humanismo, porque centrado no homem. Humanismo que perdurou até as últimas décadas do século XX, e cujas características essenciais as primeiras décadas do século XXI foram borrando, desfocando, não por meio de questionamentos sólidos, mas através da desconsideração de suas premissas nos fazeres tecnológicos absolutamente admiráveis em sua potência transformadora da natureza sobre a Terra e, em menor escala, da natureza nas proximidades do planeta.
É com assombro, com sentimento de absoluta potência (tecnológica) misturado ao de quase total impotência (filosófica e político-ideológica), que participamos, todos, como protagonistas orgulhosos ou parte de uma plateia ora amedrontada ora exultante, desse fim do mundo das relações sociais pautadas pelo Humanismo, sem saber o que dará o tom do tipo de relações sociais que está por vir. Enquanto sabemos que esse final de um modo de vida (a que corresponderá um recomeço) em nada afeta o Sistema Solar, a Via Láctea, o Universo – para os quais quase nada somos, sabemos também que quando acontecer o fim destes, assim como o da Terra, provavelmente não estaremos aqui e, possivelmente, em lugar nenhum, curta que é nossa existência. Assim sendo, que siga em frente a inconclusa Biografia do Mundo (a História); e que dela participemos, enquanto presentes, com ânimo e curiosidade, apreciando o Espetáculo do Mundo em andamento, não (porque é melhor assim) com os binóculos oferecidos por Nostradamus (1503-1566). Porque o Apocalipse, que ele desenhou sem piedade, está dentro de nós, não na Natureza, que não concebe início nem fim, senão pela consciência que adquiriu um ínfimo de seus participantes: o homem - inquieto, temeroso, assombrado pela sua finita condição, que, de resto, é também a das estrelas, cujo brilho tenta imitar.
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