(Um manifesto pela reflexão desinteressada sobre o tempo)
Pensar sobre o tempo: o que ele é (caso seja), como ele “funciona” e com base em quê, qual a sua origem (se é que tem uma), que relação tem com a vida (humana, animal em geral, vegetal) e com as coisas inanimadas e o universo. Não se trata, afinal, de um pensar com o qual se desperdiça aquilo a respeito do que se pensa – o tempo? Ora, perder tempo pensando no tempo? Não é sabido que todos que se dedicaram a este tipo de reflexão chegaram, no máximo, a conclusões que carecem de consenso, enquanto é a mais comum das opiniões a de que não se deve desperdiçar o tempo?
Mas o que é que se está desperdiçando quando o tempo é “gasto” sem proveito? Não é possível responder esta pergunta caso não se consiga dizer o que é o tempo. E sequer a uma aproximação desta definição se chega sem... gastar tempo pensando sobre o tempo...
A solução mais comum para este enigma circular (embora não seja uma solução, propriamente) é simplesmente deixar a questão para lá, abandonar qualquer esforço para obter uma resposta. É o que a quase totalidade dos seres humanos faz, sem qualquer peso de consciência ou sentimento de desconforto, perda ou culpa. E, ademais, poucos são os privilegiados cujas existências são beneficiadas por algum tempo livre de obrigações econômica e socialmente impostas, que possa ser dedicado a devaneios.
Pensar sobre o tempo é deixar de utilizar o tempo para atividades bem mais atraentes, mesmo que sejam atividades intelectuais, reflexivas, especulativas, meditativas. O que é que se ganha com este tipo de inquietação?
Nada, não se ganha nada pensando sobre o tempo, assim, de maneira aberta, totalmente abstrata, sem compromisso com alguma descoberta científica ou tecnológica que possa render glória, fama ou riqueza.
Todavia, nem só de riqueza, glória, fama – bens materiais ou simbólicos de valor – vive o homem. Ainda bem! Menos mal! Então, alguns pensam sobre o tempo a troco de nada disso. Confortados apenas com o encanto de perseguir a compreensão de um mistério que a quase todos parece a mais conhecida de todas as “coisas”: o tempo.
Refletir sobre o tempo sem querer chegar a fórmulas ou técnicas que possam ser convertidas em conhecimento/informação ou bem/serviço comercializável – não visando ganhar dinheiro com isso.
Refletir sobre o tempo sem a intenção de descobrir o caminho para a felicidade – fugindo desse engano abominavelmente vendido pelos adeptos da auto-ajuda.
Refletir sobre o tempo não como cientista, não como filósofo, não como sacerdote – sem vestir os trajes ou ostentar os anéis e coroas brilhantes das funções humanas enobrecidas pela aura de geniais ou divinas.
Refletir sobre o tempo sem finalidade explícita, sem a obrigação de fazê-lo nem interesse pelo reconhecimento pelo feito. Refletir por refletir, como uma espécie de vingança à natureza implacável do tempo; como uma frontal negação da exigência econômica e social de dedicação apenas ao que serve a alguma finalidade comumente aceita, a algum porquê pré-determinado.
Refletir sobre o tempo para que este enigma continue como tal – dando um passo além, a cada passo dado pelo decifrador –, pois só assim o que há de encantador na vida humana não se converte naquilo em que ela nunca deveria ser (mas em quê quase sempre se torna): uma generalizada luta pela sobrevivência, pela riqueza, pelo poder, pelos fins que justificam os meios.
Refletir sobre o tempo para evitar ser o cão de guarda do existir por existir; para fugir a uma existência que é somente a luta por prolongar, com o mínimo de transtornos e de inquietações, o que acontece entre o surgir e o desaparecer.
Refletir sobre o tempo não para com isso ganhar ou poupar minutos, horas e dias nas práticas e fazeres, assim ampliando riqueza e poder, mas simplesmente para sentir a vertigem de, sendo finito, espiar pelas frestas do pensamento que permitem entrever a eternidade, esta dimensão em que a temporalidade desaparece. E, a partir disso, não apenas aceitar, mas amar a finitude.
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