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Foto do escritorValdemir Pires

Quando eu fui a Macau (3a. parte)


Coletânea de estatísticas publicada às vésperas da devolução de Macau à China


Macau se apresenta ao mundo como ponto de encontro entre Ocidente e Oriente, o que, de fato, geograficamente se tornou desde que os portugueses lá chegaram no século XVI. Urbanística e arquitetonicamente, tira-se a mesma conclusão, caminhando-se pelas ruas, avenidas, praças e observando-se residências e estabelecimentos locais – uma mescla de ibérico com oriental. Mas no final do século XX, outro encontro se podia notar naquele lugar: o do antigo com o novo, do passado com o futuro. Era então um local de transição histórica: estava ali se afirmando, por força da localização estratégica no Sudeste Asiático, o capitalismo global, sob a égide dos setores financeiro, imobiliário, tecnológico e de negócios com commodities industrializadas (leia-se bugigangas, como eletroeletrônicos, roupas e calçados, utensílios e ferramentas, muitas de baixa qualidade, ameaçando as indústrias concorrentes mundo a fora) e turismo. Era flagrante, em ambos os lados de ruas e avenidas, a convivência entre sofisticadas lojas de joias, roupas de grife e eletrônicos e pequenos comércios de alimentos e utilidades domésticas. Havia quarteirões em que uma filial da Cartier ou da Chanel ficava ao lado de um comércio de aves para alimentação: os patos depenados e com seus pescoços reluzentes em formato de cabo de guarda-chuva pendurados quase à beira da calçada, desafiando a sofisticação de grandes vitrines de vidro iluminadas contendo caros relógios, joias e vestuário de alta moda. As antigas bicicletas que circulavam nas ruas de cidades orientais, como principal meio de transporte da população nas áreas urbanas, estavam sendo substituídas rapidamente por veículos motorizados de duas rodas, que disputavam as vias com um volume de carros de luxo que no Brasil eram meia dúzia até mesmo na cidade de São Paulo. Um fato que chamava a atenção era que nenhum carro, simples ou de luxo, deixava de ter, no painel ou pendurado no retrovisor interno, alguma imagem, boneco ou animal de pelúcia, como se isso fosse algo obrigatório, assim como servir chá a quem chegasse a uma casa ou restaurante, ou ter, próximo à casa ou comércio, alguma vareta de incenso acesa, junto a algum ícone.



Miniatura em metal pintado, com partes articuladas: chacoalhado, o peixe dança como se estivesse nadando


Macau era – e se consolidou como – uma área de convivência pacífica entre templos religiosos, de um lado, e cassinos, de outro, como se o recato preconizado pela fé e o destempero de tentar a sorte no jogo não fossem antagônicos entre si. Eu ficava imaginando alguém, no final da tarde, depois do expediente, passando pelo templo budista e lá acendendo uma vareta de incenso para, logo em seguida, adentrar o cassino e lá permanecer até esgotar as moedas, no meio o final da noite. A sensação, ali, era de que alguém não tinha escolha: ou ia para um prostíbulo ou se aninhava em algum lugar de oração ou meditação – nada de meio termo. Em termos de sensação psicológica, nada de encontro: escolhia-se entre ir para casa cuidar da vida mantendo ilibada a reputação ou se fazia o contrário. O que o brasileiro chama de paquera, parecia inexistir. Bares, tal como conhecidos pelos latinos, não sei se havia, pois se houvesse, seriam oásis no deserto, pequena ilha no oceano. Quando fui tomar uma cerveja (tinham Cintra), coisa rara de se fazer por lá, então, sentei-me, fui primeiramente servido de chá muito quente (gratuito) e depois foi trazida a garrafa gelada.


O passeio vespertino do primeiro dia em Macau foi de saboroso choque cultural, de descentramento. As pessoas, as relações, o funcionamento das coisas se voltavam para a sobrevivência como em qualquer outro lugar, com grande grau de previsibilidade, mas nelas havia algo de desconcertante, assim como nos lugares, para alguém de fora. E este estranhamento clamava pelo reconhecimento de dois fatos: onde quer que estejam, os seres humanos lutam pela sobrevivência e se viram para se adequar às lógicas do poder que sobre eles pesam, mas em cada lugar específico, o modo como o fazem apresenta singularidades notáveis que são uma riqueza cultural. Essas diferenças, entretanto, tendem a uma homogeneização, provocada pelas relações econômicas fundadas na troca maximizante de mercadorias, cuja produção requer técnicas redutoras de custos que, ao se imporem, tornam standard tudo que satisfaz as necessidades quotidianas. Este tipo de homogeneização estava em curso lá em Macau, no final dos anos 1990.


Comprar, em pequenas lojas de artesãos, peças que dão testemunho de um tempo em que não a produtividade, mas a singularidade de cada forma de fabricá-las é o fator relevante, foi, de imediato, minha tendência, para evitar a propensão, tão comum, de voltar de viagens internacionais com a mala abarrotada de mais do mesmo, mas a preço inferior, sentindo-se “levando vantagem em tudo”. Numa lojinha apertadíssima, comprei meia dúzia de peixinhos de metal ricamente pintados, fascinado com o fato de seus corpos serem móveis, simulando o movimento sinuoso do peixe quando nada, graças à articulação das suas partes. Poucos quarteirões depois, foi a vez de uma caixinha, também metálica e colorida, chamar minha atenção pelos detalhes: cenas com duas pessoas, aparentemente uma mulher nobre e sua serviçal, interagindo durante o dia e durante a noite – coisa com significado que me escapava, mas era vivamente ilustrada com cores marcantes auxiliadas pelo tipo de tinta utilizada.



Caixinha de metal ricamente ilustrada


Retornando ao hotel, já com fome, passei ainda na frente do prédio singular de um banco em que a intenção de manter juntos o antigo e o moderno é explícita, sendo o alto edifício de arquitetura futurista (na época) construído acima de uma construção antiga restaurada com requinte. Tal intenção se insinuava em vários outros pontos, o cuidado com a memória arquitetônica lado a lado com o apreço à inovação e à inventividade ao edificar e cuidar de logradouros. Talvez porque estava-se às vésperas da devolução de Macau para a China, os portugueses zelando pela boa figura e preservação da memória do tempo de seu domínio sobre a região. Era notório o esforço em revigorar ou implantar calçadas de pedra portuguesa, em restaurar ou implantar adornos em azulejo, inclusive placas com nomes de ruas feitas de porcelana, com o típico azul nas bordas.


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