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  • Foto do escritorValdemir Pires

Orçamento público e catástrofes


Se há um assunto que jamais deixará de ser polêmico na ciência econômica (que basicamente é uma teoria do mercado), este assunto é o orçamento público, já que ele é o instrumento formal da intervenção do estado nas relações mercantis, avessas ao poder, em defesa da liberdade individual (em tese). De fato, o orçamento é a mão visível da política, medindo força com a “mão invisível” no mercado. É como se o orçamento fosse o mapa da ilha em que se constitui o interesse coletivo, no meio do oceano que é formado pelos interesses individuais – ilha que desde o advento do capitalismo se deseja reduzir ao mínimo, objeto de ataque impiedoso dos neoliberais desde a última década do século XX. Ilha, todavia, em que todos querem ser acolhidos quando acontecem catástrofes de grandes dimensões, como as climáticas, tal como a ocorrida recentemente no Rio Grande do Sul.

 

A hora, agora, é de prioridade à vida, de socorro aos gaúchos e de reconstrução das numerosas cidades destruídas pelas águas. Mas não se deve perder a oportunidade de refletir sobre os fatos, a fim de não repetir erros que contribuíram e contribuem para que o sofrimento atinja tantas pessoas e famílias, sem encontrar barreiras para se alastrar.

 

No tocante ao orçamento público, a catástrofe no Sul do Brasil induz a pensar acerca de pelo menos cinco tópicos de extrema relevância.

 

Primeiro: o papel do Estado. Quanto mais amplo este, maior a demanda por recursos e, por conseguinte, mais pesado o “fardo” da tributação, menor a liberdade para os indivíduos decidirem os destinos de seus rendimentos, reduzidos pela “patada do Leão”. Uma nação tem que decidir entre um Estado mínimo, barato, ficando á própria sorte diante das catástrofes, ou um Estado um pouco avantajado, mais caro, mas capaz de socorrer os indivíduos e famílias nos piores momentos da vida. E esta decisão tem que ser tomada e sustentada ao longo do tempo, pois não se pode optar por ela nas crises e abandoná-la nos momentos de tranquilidade. Assim é principalmente se considera-se que as crises tendem a ocorrer com mais frequência e maior intensidade, em decorrência do problema climático que o mundo atualmente enfrenta.

 

Segundo: pacto federativo. Quando tudo vai bem, os Estados mais ricos da Federação se sentem injustiçados diante dos demais, avaliando que em termos orçamentários mais põem do que tiram. Diante disso, chegam a ter delírios separatistas, principalmente se parte expressiva dos habitantes se imaginam, de algum modo, superiores aos de outras regiões. Mas quando as coisas começam a ir mal, aí então a União passa a ser cobrada e criticada se seus cofres não dão conta do que é necessário gastar. Em verdade, pacto federativo não deixa de ser, também, uma espécie de seguro contra situações catastróficas; mas vale como um pacto nupcial: na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Via de mão dupla.

 

Terceiro: planejamento urbano. O orçamento dota o Estado de meios financeiros para, entre outras coisas, cuidar do território, o que significa atuar quotidianamente sobre ele, visando seu melhor uso e ocupação, recomendando-se que isso seja feito mediante boas práticas de planejamento. Deixados à solta, a ocupação e o uso do espaço seguem a lógica do interesse individual imediato, colocando em risco o futuro e o interesse coletivo. Diante das ameaças da crise climática, o planejamento e o correspondente orçamento para viabilizar suas premissas e metas, tornam-se necessários de um modo inescapável e urgente. Atuar corretivamente vai ficar cada vez mais caro e doloroso.

 

Quarto: defesa civil no orçamento público. As dotações para esta área da atuação estatal são normalmente negligenciadas. O corriqueiro é inserir na lei orçamentária anual um mínimo de gastos, para sustentar as pequenas estruturas administrativas existentes e valores pouco expressivos para investimentos, muitas vezes não realizados. A ideia básica é que se o valor necessário para enfrentar crises de grandes proporções for colocado no orçamento, não sobra dinheiro para nada mais, o que é verdade; mas daí a se destinar apenas dotações simbólicas, sujeitas a cancelamento, para a defesa civil, vai uma grande distância. Doravante é preciso considerar os eventos catastróficos, mormente os decorrentes das ameaças climáticas, como um novo dado de realidade. E pensar e agir preventivamente. Há que se considerar cada vez mais necessárias i) a formação de gabinetes de crise (ou estruturas de coordenação das ações) como formas de enfrentar as catástrofes (que interrompem abruptamente o planejado considerando situações normais) e ii) a destinação de recursos orçamentários em volumes adequados para viabilizar medidas preventivas contra ocorrências desastrosas relativamente previsíveis – trata-se de um tipo de “caro que sai barato”. Ou seja, o conceito de defesa civil precisa ser revisto, considerando-se que a emergência anda deixando de ser pontual.

 

Quinto: créditos orçamentários extraordinários. A legislação brasileira prevê o uso deste tipo de crédito diante de guerras, catástrofes e calamidade pública. Diferentemente dos créditos ordinários e especiais estabelecidos pela Lei 4.320/64, em vigor, os extraordinários praticamente suspendem o orçamento como instrumento de planejamento e realização do gasto público. Isto porque o governante precisa atuar com urgência para salvar vidas e recuperar infraestruturas e capacidades de atuação. Por isso, as despesas passam a ser realizadas mediante decreto e não lei, que precisa ser aprovada pelo Legislativo. Trata-se, como se vê, de um regime de exceção orçamentária. Todo poder para gastar se concentra nas mãos do prefeito, do governador ou do presidente, conforme a área de abrangência das situações excepcionais. E aí, todo cuidado é pouco, no tocante às escolhas alocativas do dinheiro público e no que diz respeito à fiscalização dos gastos e dos resultados alcançados.

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