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  • Foto do escritorValdemir Pires

O zelota e o apóstolo dos gentios



Jesus, o Cristo (o Ungido) é uma criatura singular, dada a contradição de seu ser, ao mesmo tempo homem e Deus. Como Deus, além-mundo, inexplicável somente pelas lentes da razão; como homem, histórico, de carne e osso e sangue nas veias, insuficientemente compreendido pela abordagem estritamente teológica. Quem é ou foi Ele (ou ele)? E a pergunta tem que ser formulada assim: quem é (tendo ressuscitado e estando, portanto, vivo, hoje, sentado à direita de Seu Pai) ou quem foi (tendo morrido na cruz e se tornado uma duradoura história inventada por seus seguidores)?

 

Essa questão – quem é ou foi Jesus? – não é, como pode parecer à primeira e preguiçosa vista, um assunto apenas para pessoas de fé, cristãs, mas uma inquietação relevante para todo aquele que não se contenta em simplesmente viver, mantendo à distância o eterno enigma: o que somos, de onde viemos, para onde vamos, como podemos encontrar o nosso melhor para nós e para o mundo enquanto somos? Sim, porque a figura do Cristo é um espelho para onde olhar quando essas questões são encaradas, tenha-se ou não algum tipo de fé.

 

Pensa-se que quando se vai em busca do Cristo-homem, desvia-se do Cristo-Deus e vice-versa. Parece não haver possibilidade de juntar as duas partes numa única “peça”, a não ser mediante a fé, que abdica de explicações racionais. Mas não se pode esquecer que não existe explicação histórica nenhuma que tenha encontrado e apresentado um mundo, um lugar ou um tempo em que os seres humanos estavam livres de um olhar para além de si. Ou seja, qualquer História que pretenda isolar o homem de suas crenças, das histórias fantásticas que conta de si mesmo, das fabulações e mitos, não será, de fato História, mas um tipo de racionalização que “racionaliza demais”, portanto desumanizando o próprio homem, lançando-o a um abismo, em vez de permitir que ele permaneça à beira de um, porém mirando o firmamento, os astros, o que está acima dele e que talvez o explique mais do que tudo ao seu redor, em sua ânsia por transcendentalidade ou simples amparo.

 

Li Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan (Rio de Janeiro: Zahar, 2013, 303 p.) entre 31/08 e 02/09 de 2014. Refiz a leitura, mais concentrada e atentamente, passados dez anos (de 17-19/08/2024), sem motivo especial, espantado por perceber que a primeira leitura tivesse acontecido há tanto tempo. Este é, para mim, um livro maravilhoso, pois entendo que o esforço analítico que nele se faz – de buscar o histórico, com dúvida metódica, naquilo que se tornou lendário ou dogmático – é um empreendimento gratificante, pondo em movimento mente e espírito em fuga do lugar-comum.

 

A tese sustentada por Aslan é muito interessante: 1. A Igreja abandonou o Jesus nazareno (histórico) em favor do Cristo transcendental (fundamento de uma religião), o que 2. abrandou-lhe a figura, transformada de um revolucionário (zelota ou essênio) em pregador da paz (em vez de “olho por olho”, “oferece a outra face” ao agressor); e 3. Paulo de Tarso foi quem mais contribuiu para isso, ele que não conviveu com Jesus como apóstolo e, portanto, não o conheceu senão em “revelação”.

 

Esta tese emergiu de vinte anos de estudos do autor, abordando variadas fontes, bem documentadas no livro. Ao argumentar e demonstrar suas conclusões, Aslan admite a imensa dificuldade para efetivamente localizar e devidamente identificar e caracterizar o homem Jesus, pois o que há a seu respeito é o que dele disseram, com muitas lacunas e contradições, mesmo nos documentos mais possivelmente verossímeis, escritos a muitas mãos e traduzidos e retraduzidos para tantos idiomas. Aslan recorre, portanto, na tentativa de fugir a esta dificuldade intransponível, aos elementos característicos da época daquele homem, para então esboçar um possível indivíduo tal como poderia ter sido Jesus. Nisso, o que mais salta aos olhos é que ele foi um judeu descontente com a dominação do seu povo pelos romanos, voltando-se contra ela (daí ter sido, possivelmente, um zelota ou um essênio, grupos que assim se comportavam). Tudo o mais teria sido decorrência do que seus apóstolos e futuros adeptos (acima de todos Saul de Tarshish ou Saul bem Hillel, Paulo de Tarso, para os romanos) teriam construído para sustentar o surgimento e disseminação do que viria a ser o cristianismo e, posteriormente, a Igreja Católica, tanto a Ortodoxa como a Católica Apostólica Romana.

 

Terminada a leitura de Zelota, lembrei-me de que havia lido, parcialmente (302 páginas), há muito (setembro de 2014), O grande amigo de Deus, de Taylor Caldwell (Rio de Janeiro: Record, 2005, 22ª. ed., 700 p.). Não concluí a leitura, naquela ocasião, incomodado pelo perfil conservador da autora, pela natureza um tanto “quadrada” dos personagens, pela artificialidade dos diálogos e pelas cansativas e desnecessárias descrições dos cenários. Mas resolvi me livrar desta pendência (como costumo fazer em relação a textos que não me agradam – iniciados, são concluídos), também com o intuito de ir mais adiante no tocante à figura de Paulo de Tarso. Li a obra toda de 19 a 25 de agosto de 2024.

 

O interesse se concentrou em receber, na totalidade, o que Caldwell se propõe a oferecer em seu livro, que ela diz (e parece verdade) ser resultado de muito estudo e pesquisa: uma visão de Paulo de Tarso como homem mergulhado em contradições e angústias – um atormentado, mais do que um intelectual que foi fundamental à consolidação e disseminação do cristianismo no mundo. Trata-se, pois, de uma biografia romanceada, que cativa, apesar dos incômodos antes mencionados quanto ao estilo. Carrega Paulo pelas mãos, do nascimento à morte, passando pela famosa conversão, no caminho para Damasco. Um rico judeu, de família influente, ele desde criança foi, dir-se-ia hoje, um fundamentalista, dogmático, intransigente, apesar de, na infância e juventude, ter sido ensinado ao mesmo tempo por um rabino e um grego descrente e sensualista, num ambiente familiar e social bastante cosmopolita e plural. Ele inicialmente tomou o Nazareno como um impostor ignorante, mais tarde perseguindo seus seguidores como blasfemos, a mando de Caifás e Pilatos. Por isso, depois de convertido, caiu em isolamento: os cristãos desconfiavam que fosse um espião entre eles, enquanto os judeus o viam como exageradamente correto e pouco afeito ao “confortável” domínio romano, levado a cabo com bastante tolerância às práticas e, sobretudo, aos interesses dos ricos descendentes de Moisés.

 

Em O grande amigo de Deus, Paulo, adolescente, encontra Dacyl, uma escrava grega, com quem tem um filho, apelidado Bóreas, que mais tarde irá adotar, como Enoque ben Saul, depois de descobrir que o avô do menino, seu pai, em segredo, providenciara o sustendo da criança, sem dizer ao filho que sabia de sua aventura, de seu pecado (que o atormentava secretamente); também tardiamente se apaixona por uma mulher (Elisheba), sem nunca desposá-la, ela que muito antes lhe havia sido oferecida em casamento, sendo recusada sob o argumento de plena dedicação a Deus. Paulo teria sido um notório misógino, e não um homossexual enrustido, como alguns suspeitaram – no mínimo, um judeu preconceituoso com relação ao feminino, assim como o era com relação aos pobres desprovidos de inteligência e espírito. Era, sobretudo, um infeliz, avesso a alegrias, pequenas ou grandes, apesar dos apelos de Aristo, seu mestre grego, escravo liberto de seu pai, que por ele tinha grande apreço.

 

Paulo era, portanto, bem a “cara” do catolicismo um tanto castrador e admoestador de seus fiéis, fonte intelectual de catecismos domesticadores de crianças, crismas subordinadoras de jovens e matrimônios sacramentadores de adultos monogâmicos. Claramente adepto do que viria a ser o celibato exigido de sacerdotes católicos.

 

De certo modo, o que aparece no romance de Caldwell (inglesa/americana) dialoga complementarmente com o que é apresentado no estudo de Aslan (iraniano/americano), a imaginação contribuindo com a investigação, a arte (literária) convivendo amigavelmente com a ciência, para o esboço de uma figura humana de absoluto relevo: Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, aquele que, sem ter sido um dos doze apóstolos, auto-edifica-se no décimo terceiro deles, para fazer proselitismo entre os que não eram judeus, como ele, e como Jesus e seus apóstolos.

 

Tanto o Jesus histórico, metodicamente resgatado (tanto quanto possível) por Aslan (1972-), com as ferramentas da investigação científica, como o Paulo de Tarso, talentosamente biografado, literariamente, por Caldweel (1900-1985) são figuras e símbolos do que o homem contemporâneo é ou procura ser, agora afirmando a “morte de Deus”, enquanto, e por menos atenção que se dê a isso, tantos fundamentalismos e pentecostalismos estejam brotando mundo afora, à revelia e à sombra do inquestionável avanço do conhecimento científico e do domínio tecnológico típicos do século XXI da era cristã.

 

Se “Deus morreu”, é preciso saber qual. E perguntar se ele pode ou não ressuscitar. E se, podendo, quer. E se os homens querem, ou continuam preferindo Barrabás... Porque assim como não há vazio de poder, não existe vazio de fé. Ao homem não é dado abolir a política nem a crença de que não é um simples desdobramento material no universo indiferente a ele. Por isso, refletir e imaginar, como fizeram Aslan, Caldwell e seus leitores, é sempre interessante, além de prazeroso. Nem é preciso nada concluir com eles ou a partir deles. Basta deixar que a alma (ou a mente, simplesmente) passeie no jardim das ideias, da arte, da ciência, onde não brota aquele tédio que tantas vezes serve de adubo ao ódio.

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