(Publicado também no Diário do Engenho)
Lembrar o nascimento de Jesus Cristo no dia 25 de dezembro é uma prática que a nós, modernos, com ou sem inclinação religiosa, parece algo que se faz desde que o mundo é mundo; ou, pelo menos, desde que o mundo (ou uma boa parte dele) se tornou cristão. Mas isso não é verdade.
Os historiadores afirmam que o dia de Natal apareceu pela primeira vez no ano 354 d.C. do calendário romano, que se inicia com a fundação de Roma, em 753 a.C. Durante os três séculos e meio anteriores, discutiu-se qual o momento mais relevante para o cristianismo, disputando a condição três acontecimentos: o nascimento de Cristo (o Natal, 25 de dezembro – data um tanto arbitrária, admite-se), seu batismo (aos 13 anos, parece que em janeiro) ou a Anunciação (quando o Arcanjo Gabriel deu a Maria a notícia de que ela conceberia um filho – portanto, 9 meses antes do dia de Natal, março). A data do batismo foi abandonada quando se aceitou o argumento de que a natureza divina do Menino Deus se manifesta já no seu nascimento, prescindindo do batismo, este apenas um evento em sua vida terrena, que serve para inclui-lo entre os homens de uma determinada fé, de que ele será ao mesmo tempo confirmação e mudança. Quanto à Anunciação, talvez tenha sido considerada mais relevante para a santificação de Maria – há que se verificar a causa de seu abandono como data máxima.
Também o Dia de Ano Novo tem a ver com Jesus. No Ocidente, o nascimento de Cristo é considerado o início de um novo tempo. Por isso o ano 1 do calendário dos países que se localizam nesta área geográfica corresponde àquele fato religioso. Tanto que se adotou a terminologia a.C./d.C. como forma de localizar os eventos na História, conforme tenham ocorrido antes ou depois do nascimento de Cristo. Também este procedimento parece a nós, modernos, algo praticado não desde que Cristo nasceu (o que seria impossível), pelo menos logo em seguida à sua morte e ressurreição. Mas não aconteceu assim. Foi Dionísio, o Exíguo, quem, em vão, sugeriu a notação a.C./d.C, em 525 d.C. O Venerável Beda (672-735 d.C.) a introduziu na Inglaterra, com um pouco mais de sucesso (não muito) porque questões de data naquela época, naquele local, começavam a ser importantes para a legitimação da posse de terras. Na Igreja Católica, a notação foi adotada em documentos oficiais em 956, pelo Papa João XII; Leão IX, reforçou a medida em 1084 (em todos os casos, a Encarnação, ou Anunciação, ocorrida em 25 de março, era considerada o ponto de origem, e não o nascimento). Levaria algum tempo, ainda, para que a.C./d.C. se tornasse escrita corrente na datação, até porque, a importância de encarar o tempo como sucessão de números acontece generalizadamente apenas depois do advento do relógio mecânico, no século XIII.
Tanto o Dia de Natal como o Dia de Ano Novo, portanto, remetem a uma única figura, imensa: Jesus Cristo. Deus feito homem, homem que moldou a História ou apenas um mito que a História acolheu, não importa, trata-se da grande referência ocidental, a moldar não só a organização das horas, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos, dos séculos, mas também uma visão de mundo predominante, a partir de uma determinada fé.
Que sobre esta figura filosófico-teológica que é Jesus, lance sombra, no Dia de Natal, não sei desde quando e nem o porquê, uma outra figura (simpática e risonha, um tanto bobalhona, de barbas brancas e trajes vermelhos, locomovendo-se num trenó puxado por renas), é algo espantoso. Mas que bem pode ter sucedido porque os tempos modernos são tempos identificados essencialmente pelas trocas mercantis (de compra e venda), ao contrário dos tempos medievais, que foram tempos fundamentalmente de fé e oração (tempos em que Deus e seu Filho, por meio da Igreja, “davam as cartas”, e não o dinheiro).
Assim, que fique claro que, no Dia de Natal, recolher-se, ou agregar-se no templo, em oração (ou, minimamente, em reverência) ao Cristo corresponde a uma escolha diante da História; enquanto, por outro lado, envolver-se com presentear e ser presenteado, com a mediação do Bom Velhinho (cujo saco de bugigangas é abastecido pelo ávido mercado, explorador de expectativas), corresponde a outra postura. De um lado, consumismo incentivado pela utilização oportunista de uma data; de outro, um comportamento sociocultural marcadamente religioso, mas que pode ser assumido também por homens que não sejam portadores de fé, simplesmente pelo respeito à visão de mundo de toda uma fração da humanidade (o Ocidente) baseada em valores que dignificam a vida, pautando-se acima de tudo pelo mais profundo Amor: de Deus pelos homens, dos homens por Ele, dos homens entre si.
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