O dia dura 24 horas. 8 delas destinam-se, idealmente, à “pequena morte”, o inevitável sono restaurador. Restam dois terços, 16 horas. Levando ao pé da letra o que diz Friedrich Wilhelm Nietzsche em Assim falava Zaratustra , “...quem não tiver para si dois terços de seu dia é um escravo, seja ele de resto o que quiser — político, comerciante, funcionário ou erudito”, somos todos escravos, enquanto estamos acordados.
Resta a possibilidade de considerar nossas, para o desfrute de nossa liberdade, as 8 horas de sono. Seríamos, então, apenas “meio escravos”. E se trata, nesse caso, de atitude não controversa. Dormir é um exercício de liberdade? Do ponto de vista de que enquanto o fazemos, ninguém manda em nós (ufa!), pode-se dizer que sim. Mas se considera-se que enquanto se dorme não se faz o que se deseja – não mandamos em nós mesmos, então a resposta é não.
Mas, vá lá, descontadas as 8 horas de sono (a noite), o dia “efetivo”, enquanto dura a vigília, tem 16 horas. Para facilitar as contas, consideremos 1 hora de desperdício (contabilizada na rubrica “transtornos diversos”) e digamos, então, que o dia, para o exercício da liberdade ou para a dedicação ao que exigem os nossos senhores, dura 15 horas. Dois terços dele serão 10 horas, o tempo requerido pela lógica nietzschiana para fugir à escravidão. Contemporaneamente falando, o máximo a dedicar ao trabalho no interesse alheio (livremente contratado, no mercado) deveria ser, pois, de 5 horas. Jornadas de 8 horas ultrapassam o limite em 60%. Reivindicar que sejam reduzidas, é um claro imperativo econômico de índole marxista (a produtividade atual média do sistema provavelmente permite), mas combina bem, também, com o imperativo filosófico daquele que disse que “Deus está morto” e nos deixou a dúvida: “Será que nós restamos vivos?”.
Ninguém deveria se contentar em ser somente o que faz, muito menos o que faz porque é obrigado a fazer. Aquele que só faz, de fato não é – limita-se a existir, provê a subsistência, mas não dá à existência um sentido e não a leva sob um propósito seu. Existir, simplesmente, não é ser. Ser é, com liberdade, dar vazão ao livre arbítrio em busca de algo próprio – sentido e propósito. A formiga não existe, mas não é, assim como o gato e o galo, o peixe e a serpente, o colibri e a borboleta – não carecem de sentido nem de propósito, que lhes vêm da natureza. Somente o ser humano tem a possibilidade de fazer de si algo que não está dado em si desde o nascimento; somente ao ser humano é dado buscar o ser a partir de sua existência.
Ocorre que, de posse de tempo livre, nem todo indivíduo irá se dedicar à busca do ser, à construção de si à luz de desígnio próprio. Mais provável é que a maioria seja tragada pela imitação e pelo entretenimento. Entretenimento que é em geral consumo, na sociedade de massas padronizante. Imitação que é desejo de ser como outrem (consumir como outrem), não de erigir um modo de ser plenamente livre.
Isso posto, a pergunta: Quanto do seu tempo é seu? pode ser formulada como: “Por quanto tempo você é você” ou até mesmo “Por quanto tempo você suporta ser você?”. Caso você venha a ser agraciado com mais tempo livre, a ser utilizado conforme sua vontade, para onde ela se dirigirá? O que seu livre arbítrio escolherá? Se o tempo ganho for para o envolvimento em consumo ou entretenimento de massa, você estará trocando seis por meia dúzia: de escravo de outrem que o contratava, passa a escravo de um sistema que o ilude; enquanto a sociedade de que você faz parte estará perdendo um bom escravo produtivo e ganhando um bobo alegre consumista.
Complicado isso, não? Mais complicado ainda é, diante disso, encontrar o caminho no qual a liberdade é utilizada para a busca de sentidos e propósitos que não sejam aqueles que a inércia do status quo incutem em nossas mentes e corações, e os fazem parecer aquisições nossas, partes de nossa verdade interior, quando não passam de manipulação barata e interesseira. Complicado, mesmo, o esforço de conviver com a angústia do tentar ser, recusando a anestesia de seguir existindo, apenas, num mergulho no que está posto, dado, aparentemente inevitável.
Tendo chegado até aqui, você pode estar pensando que com estas reflexões estou dançando, quando a natureza do tema abordado exige que eu, em vez disso, marche. Cuidado! Reflita a respeito de outra percepção de Nietzsche: “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
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