Desmanifesto pela participação popular
- Valdemir Pires
- 24 de fev. de 2016
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de nov. de 2024

Leia aqui artigo de Andre Rehbein Sathler Guimarães e Valdemir Pires no Estadão Noite de 24/02/2016.
A literatura sobre democracia participativa, deliberativa, aprofundada, democratizada, que alça voo a partir da crítica à insuficiência da democracia representativa tradicional no mundo contemporâneo, em geral, e no Brasil, em particular (onde orçamentos participativos e conselhos gestores de políticas públicas tiveram início nas última décadas do século passado, ao sabor da redemocratização pós-ditadura militar), proliferou e prolifera, ainda, não havendo quem, nas Ciências Sociais e Sociais Aplicadas, não tenha se deparado com a temática, contra ou a favor. Em jogo definições que oscilam da minimalista concepção econômica da democracia – os eleitores têm o direito de escolher a cada ciclo eleitoral a quem vão obedecer – às maximalistas utopias da democracia direta aplicada a todas as decisões, com engajamento e consciência política plena e com consensos formados via diálogo bem informado e bem intencionado.
Enquanto não se decide em qual tipo de democracia exatamente se vive, e esforços são feitos para provar que Deus (democracia) existe, mostrando que existem pessoas que acreditam em Deus, no mundo da vida saltam aos olhos dois fatos:
1. o baixo poder explicativo das atuais teorias e pesquisas para as manifestações “desorganizadas”, sem mediação de partidos ou instituições tradicionais de aglutinação de ideias e condução de processos políticos, em boa medida possibilitadas ou fomentadas pela existência da “vida virtual” abrigada pela rede mundial de computadores e turbinadas pelas tecnologias de interação social hoje existente;
2. a deterioração da qualidade da interação governos-sociedade no enfrentamento de problemas coletivos, na provisão de bens e serviços públicos, na condução de políticas públicas, ganhando proeminência as articulações levadas a efeito nos espaços tradicionais (Executivo, Legislativo e Judiciário – este último ganhando destaque cada vez maior), em detrimento dos espaços inovadores que foram sendo construídos, nas últimas décadas, sob a lógica da co-gestão da coisa pública e da participação cidadã.
A sensação, para quem lida atentamente com o tema, na teoria ou na prática ou em ambas as faces da questão, é de que há muita explicação para pouco fenômeno. Sabe-se tudo sobre o que deveria ser, enquanto o dever ser não está sendo levado muito em conta pelos atores e agentes concretos. Como se os fatos constantemente fugissem às pinças e bisturis que tentam dissecá-los. No país exemplar da participação social, esta se tornou uma formalidade, um arremedo, pois nesse mesmo país o encolhimento da participação cidadã (ou da sociedade civil organizada, numa acepção mais convencional e relativamente redundante) e o retrocesso potencial das políticas sociais, juntamente com o apodrecimento das estruturas institucionais de decisão governamental, são fatos que se esfregam na cara dos mais atentos, todos os dias.
Participação tornou-se clichê, carimbo de legitimidade a uma democracia que só existe nos livros-texto. Ostentar que um texto recebeu dez milhões de contribuições via internet, como no caso da recente discussão pública e “participativa” do currículo mínimo nacional, seria mera pretensão de assumir qualidade em função da quantidade. Saber que o Ministério não tem a menor condição técnica de processar esses milhões de contribuições e que o texto final será redigido por um petit comité apenas confirma o caráter decorativo da participação matraqueada.
É tempo de cair na real. Há que se perguntar o que deu errado. Há que se voltar a estudar a democracia representativa e suas instituições, agora quanto aos riscos de perderem funcionalidade, de serem capturadas por interesses particulares, de serem impermeáveis a doses superiores de transparência e diálogo societal, de serem incapazes de lidar com o hiperprotagonismo hiporresponsável da sociedade em rede, hiperconectada.
Quanto às inovações democráticas e instituições participativas, é fundamental buscar resposta às seguintes perguntas: o que faz com que, tão frequentemente, sejam desbaratadas ou absorvidas pelo sistema político de modo a serem neutralizadas na sua essência, sob o véu da mudança; e onde está o elo a desatar para que, na inevitável convivência entre democracia representativa e formas inovadoras de democracia participativa, estas não sejam apenas pequenos adornos, às vezes de mau gosto?
“Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra.
Pra variar, estamos em guerra.” Pelo quê, não sabemos ainda.
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