A esquerda “descobriu o mundo” (Marx diria que ela retirou o véu que escondia os fatos) ao perceber, muito tardiamente, que os homens não formam um grupo homogêneo, a espécie humana, mas sim duas classes antagônicas: os trabalhadores (explorados) e os seus patrões, capitalistas (exploradores, extratores de mais-valia). Desde então (século XIX), o clamor e as ações para que os trabalhadores tomassem consciência de classe (escapando da ideologia liberal-individualista), a fim de se emanciparem e romper os grilhões da dominação e da exploração, “ganhou o mundo”: “Trabalhadores, uni-vos!”. E foi aos poucos (ao longo do final do século XX) perdendo força, enquanto clamor e programa de partidos, não obstante numerosas e significativas conquistas que podem ser atribuídas às inúmeras lutas levadas a efeito, em todo o mundo, no século XX, senão sob o bordão comunista, nele inspirado no que diz respeito à necessidade de conter o ímpeto de certos indivíduos a abocanhar tudo que podem da riqueza e do poder, ainda que à custa de miséria e morte dos demais. Não se teria concebido nem implementado a social-democracia, não fosse o radicalismo de que ela veio a ser uma versão moderada, hoje em risco.
Classe? O que é classe? Trabalhador? Quem é trabalhador, hoje em dia? Existe alguém querendo ser e bater no peito orgulhosamente, dizendo que é um trabalhador? O que se pode entender por “mundo do trabalho” no século da tecnologia em seu ponto culminante, dispensador não só da força-de-trabalho (mãos e braços) como, em grande medida, das habilidades mentais (cérebro) de que os humanos se orgulham de ser os únicos detentores?
Juntos, embora uns explorando e outros sendo explorados, ou não (dependendo da ideologia com a qual se interpreta as relações de produção), somos todos chamados, agora, a tomar consciência de espécie: bilhões de indivíduos consumindo muito e diversificadamente e, portanto, produzindo tudo o que atende às necessidades e desejos que podem se apresentar ao mercado com poder de compra. A ponto de as reservas naturais do planeta começarem a se esgotar e de a atmosfera começar a sofrer mudanças, resultantes da poluição, que podem levar ao fim da vida no planeta.
Enquanto a consciência de classe dizia respeito à percepção de que, divididos, estávamos limitando nossos potenciais individuais e coletivo, ao não praticar o máximo em tese possível de colaboração mútua, competindo uns com os outros, a consciência de espécie indica a necessidade de compreender que, da maneira como estamos aplicando nossas habilidades espantosamente produtivas e nosso modo de distribuir e consumir a riqueza (gerada pelas atuais possibilidades tecnológicas) terminaremos inviabilizando a existência humana, apontando na direção da extinção da nossa espécie e das demais, sem que para isso venha a ser utilizado o recurso de poder extremo: a guerra nuclear.
O curioso, todavia, é que tanto a consciência de classe como a de espécie parecem longe do alcance da mente absurdamente individualista do cidadão médio do século XXI: ele se limita, ao que parece, à consciência de si, isso quando disso não se perde, também, mergulhado em patologias psíquica em franca expansão em todo lugar.
No lugar das consciências de espécie (aquela que abarca o maior número de indivíduos - todos) e de classe (o segundo maior “compartimento” de indivíduos – os pertencentes ao grupo dos explorados ou dos exploradores), a noção ou sentimento de pertença atuais concentram-se nos chamados grupos identitários: gênero, raça, comunidade, opções religiosas etc. As afinidades, nesses casos, conduzem a um fracionamento que, ao invés de permitir um acúmulo de força política com potencial altamente aglutinador e, portanto, produtor de consensos transformadores, atomizam a mesma força em torno de aspectos que ampliam as divergências e, assim, dificultam consensos amplos, os consensos parciais obteníveis produzindo uma luta sem fim, desprovida de finalidades com que a maioria pode concordar, esmigalhadas que estão as frações que a compõem.
Cada um de nós é, enquanto consciência, um – o indivíduo (corpo e espírito – sem que se saiba claramente o que é o segundo). Afora patologias, esta consciência individual é relativamente clara. A partir daí, da parelha à família, a consciência vai esmaecendo, até quase desaparecer ao atingir o nível de “humanidade”. Consciência coletiva é construção laboriosa e complexa, dependente de vontade: quanto cada um de nós deseja, e pode, se envolver com mais do que o necessário a garantir a sobrevivência e um determinado grau de satisfação com a própria vida e as vidas de, vá-la!, algumas dezenas ou centenas, talvez milhares de semelhantes? Depois da porta da casa – abrigo da família (esta, aliás, “fazendo água”) – a tendência dos indivíduos concentrados em si, do século XXI, é considerar o mundo uma “terra de ninguém”, desencorajadora.
Como já dito, consciência coletiva é construção laboriosa e complexa, dependente de vontade. Vontade, por sua vez, depende em grande medida de incentivo. Quais são os tipos de consciência coletiva que o espetáculo do mundo atual está incentivado como necessárias à continuidade da aventura humana? Não é a consciência de espécie nem a de classe, apesar de todos os discursos em torno delas, mas as muitas consciências identitárias, cuja máxima, aplicada a cada caso é: “Iguais entre si, a partir de determinado recorte, cada vez mais microscópico, uni-vos! Fracionai-vos!”. Como se a partir do aumento das numerosas diferenças (a que se clama para se respeitar como as mais fundamentais e até aqui as menos consideradas) fosse possível chegar a um paraíso terrestre.
A julgar pelo “andamento da carruagem”, o coletivo máximo a que chegaremos será o do indivíduo. A afirmativa parece um contrassenso, mas não é: afinal, dentro de cada um de nós há uma legião, incluindo anjos e demônios. Fernando Pessoa trouxe para fora de si alguns dos seus, os heterônimos. Mas ele se moveu no âmbito da Poesia, e nós, comuns dos mortais, envolvidos na luta pela sobrevivência e pelo poder que jamais cessará, nos movemos no campo da Política. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Mas sabe-se que nada nem ninguém existe separado de todo o resto, o movimento da asa da borboleta na China tendo a ver com os ventos que levaram tantas águas às cidades do Rio Grande do Sul.
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