Cidades visíveis - Saná
- Valdemir Pires
- há 19 horas
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Iêmen, no extremo sul da península arábica. Avança, em formato de bico, nas águas do Mar Vermelho (oeste) e do Golfo de Áden (leste). O estreito de Bab el Mandeb o separa da Eritreia e do Djibuti, na África. Este estreito é a porta de entrada dos gigantescos petroleiros que atravessam o Mar Vermelho com destino ao Ocidente, sendo a porta de saída o famoso Canal de Suez. Saná é a capital do país, dotado de pouco petróleo (em Marib, ao norte; e em Shabwah, ao sul).

O que atualmente (2025) faz de Saná uma cidade visível é a presença, ali, dos Houtis, odiados pelas potências ocidentais por confrontá-las acintosamente, com seus parcos meios militares e sua crença fundamentalista irremovível. A cidade, em si, de visível tem quase apenas ruínas e os sofrimentos diários de sua população, em meio ao movimento incessante de irritadiços e ameaçadores homens armados. Trata-se de uma cidade em vias de desaparecer, enquanto locus urbano, no interior de um país invisível, onde se desenrola uma das maiores crises humanitárias que já se viu, sem que haja mobilização do resto do mundo para contê-la.

Saná é um dos lugares mais perigosos para se estar, neste momento. Se uma bala, explosão ou desmoronamento não atinge quem circula por suas veias tendentes a imitar o Mar Vermelho na terra (não com água salgada, mas com sangue humano), sobra ainda o risco de precisar de hospitalização por causa de uma virose ou acidente, descobrindo que não existe o atendimento médico necessário. Visitá-la não é propriamente praticar turismo, mas viajar para uma outra dimensão da existência humana: aquela em que a vida não vale nada, não merece qualquer respeito, não se beneficia de proteção alguma. Visitar Saná é adentrar o coração da Morte, bem mais do que ir a um lugar em que a morte acontece do mesmo modo que a chuva incessante: quando não é tempestade, é chuva ou chuvisco, sem sinal de que o céu ficará livre das nuvens ameaçadoras.

Poucas horas depois que deixei o aeroporto, ele foi bombardeado por forças ocidentais, em retaliação ao apoio dos houtis aos palestinos dizimados por Israel em Gaza. Os houtis são uma das forças em combate no país, ajudados pelo Irã. Do outro lado estão as forças leais ao governo deposto, que recebe auxílio da Arábia Saudita. A presença dessas alianças revela que não acontece no Irã somente uma guerra civil que mobiliza vertentes opostas do Islã, mas uma guerra por procuração entre potências mundiais, interessadas em petróleo, gás e na manutenção da rota do Canal de Suez desimpedida para o transporte do combustível imprescindível.

O taxista que me leva do aeroporto ao hotel (se é que o precário local pode receber nome) disse não ter medo de viver em Saná, apesar de já ter perdido para a guerra civil o pai, um filho adolescente e toda a família vizinha à sua casa, que já teve de praticamente reconstruir três vezes. Para ele, viver com medo na capital do Iêmen é o mesmo que chegar ao fim antes de morrer. Então, troca o medo pela cautela: “Sempre de olhos abertos para que não sejam fechados definitivamente” – diz. Com a ajuda, claro, das levemente alucinógenas folhas de khat, que mastiga sem parar, bochecha esquerda proeminente e dentes escuros.

Estranho que tantos homens e meninos caminhem pelas ruas com uma espécie de adaga na cintura. Sou informado de que se trata da jambia, símbolo de masculinidade. Quanto à feminilidade, esta deve ser escondida pelo xador e pela burka ou, no mínimo, por um véu (niqab ou hijab).

Diz a lenda que a Rainha de Sabá (reino judeu localizado em Marib) teve certa vez um encontro com o Rei Salomão: Beleza e Sabedoria aos abraços! Bons e velhos tempos! Para nunca mais?

Vou a Xibã, depois de aliviar-me de malas e roupas suadas, comer mandi (carne de frango assada, com arroz, mas que se revela muito mais que isso) e beber um café moca (nome mais conhecido das variedades de café do Iêmen). É terrível que Xibã seja também conhecida como a “Manhattan do Deserto”, pelas características de seus edifícios em argila, que dizem ter inaugurado o urbanismo vertical (arranha-céus). O conjunto é de uma beleza de tirar o fôlego, empurrando a alma para um passado remoto. É impressionante o quanto nas vielas meninos maltrapilhos praticam futebol com bolas improvisadas, aos gritos, e homens nas ruas são prestativos e acolhedores. Xibã, cidade do passado ainda visível no presentemente invisível Iêmen.

Chegar a Saná tendo estado, imediatamente antes, em Doha (Catar) é um exercício de contraste que ajuda a compreender (mas não aceitar) o mundo atual, altamente contraditório e profundamente conflitivo. Essa mudança de local que, geograficamente, não é brusca (de um deserto a outro, não tão distantes), psicologicamente corresponde a botar a alma de ponta-cabeça. O que se sente é que o ser humano pode tudo. Tudo pode, para chegar ao céu ou ao inferno, na Terra. O dinheiro utilizado em Doha para encher de carros de luxo a luxuosa garagem da luxuosa residência (uma delas) da ostentatória família real do Catar seria suficiente para salvar milhares de vidas infantis num hospital pediátrico construído em Saná (caso ele não fosse destruído em meio à guerra civil esquecida do Iêmen).

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