O Brasil dos anos 1980 foi um país onde fé e política passaram a conviver como gêmeos siameses, nas numerosas igrejas católicas espalhadas pelas cidades grandes e pequenas, no ambiente sindical combativo (especialmente rural e metalúrgico) e nos espaços improvisados das comunidades eclesiais de base atuantes em bairros periféricos. Foi o tempo áureo da teologia da libertação, segundo a qual a vida digna para todos, dádiva de Deus a seus filhos, sem distinções, requer ação incessante contra as injustiças que os homens praticam uns contra os outros. Os fiéis eram convidados a “sair para o mundo”, espalhando fé, esperança e amor, em vez de se recolherem em orações que não transformavam o mundo na direção preconizada pelos Evangelhos.
Naqueles tempos, quem atuava em pastorais (eram muitas, visando populações específicas e tratando de temas escolhidos) sentia sua fé revigorada ao se colocar como protagonista de atividades tipicamente políticas, que convidavam “os explorados” e os injustiçados a tomarem consciência de sua condição e agir para modificá-la. Adotava-se um método conhecido como ver-julgar-agir.
As críticas eram muitas, no conjunto da sociedade e também no interior da própria Igreja, a partir do argumento de que fé é uma coisa e política é outra, não sendo conveniente misturá-las. Havia, ainda, os que defendiam o sofrimento na terra como pagamento antecipado à felicidade eterna pós-morte. E os próprios adeptos da teologia da libertação que mergulhavam nas práticas dela derivadas, desde que sinceros consigo mesmos, viam-se com frequência refletindo sobre as contradições entre fé e política, principalmente quando os enfrentamentos com enfoque classista opunham fiéis entre si, nas relações quotidianas propiciadas pelas cerimônias religiosas e serviços sociais oferecidos pelas paróquias.
No campo da Teologia, silenciosamente corroendo pelas bases as ideias e práticas progressistas então em voga, o pensamento católico conservador dava passos lentos, mas firmes, naquele momento crítico, resultando, com o passar do tempo, no espocar de uma “renovação católica”, nos moldes da Renovação Carismática americana dos anos 1960, de natureza pentecostal. O desdobramento foi o arrefecimento da fé engajada nas lutas sociais, a favor de práticas religiosas focadas no recolhimento em busca da paz pessoal e salvação individual. Esse resgate do pentecostalismo católico chegou atrasado em relação ao praticado por denominações religiosas protestantes no país. Estava crescendo e se robusteceu enormemente um tipo de fé baseada no acolhimento e formação de comunidades solidárias prometedoras de prosperidade a partir de uma relação de troca com Deus (e com seus pastores, claro!). A hostilidade, nessas comunidades, às ideologias e pensamentos políticos progressistas, é uma marca da evolução desse processo de transformação das práticas religiosas no Brasil e, ao que parece, em muitos outros lugares mundo afora.
As discussões teológicas a respeito da compatibilidade ou não entre fé e política são intermináveis. E as práticas religiosa oscilam entre a vertente conservadora e a vertente progressista, conforme as sortes e azares, a argúcia e a estupidez (além da malandragem) que marcam o processo histórico. Talvez daqui a alguns anos ou décadas a gangorra penda, novamente, para o lado da antiga teologia da libertação. Isso acontecerá se Abraham Lincoln não cometeu engano ao afirmar que "pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo."
É possível viver sem fé (o que não é fácil, como comprova a permanência das religiões ou crenças e sua importância na vida social, cultural e política em todo o mundo, desde sempre), mas nunca sem a política, pois onde houver mais de um homem, haverá relações; e onde há relações humanas, há poder e, portanto, política.
Também sem amor não se vive, a não ser uma vida que não vale a pena. Por isso é preciso refletir não só a respeito das contradições entre fé e política (desde que se julgue importante a fé), mas também sobre a complicada relação existente entre amor e política. E aí, o nó górdio é percebido claramente por Carl Jung quando diz que: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro.” Se assim é (será, mesmo?), o que um militante político (esteja ou não disputando ou ocupando cargo governamental) precisa fazer para não ser raptado pela política e, por decorrência, separado do amor? Antes: se o que Jung entende por política parece ser o mesmo que se afirma aqui (a lida com o poder, com métodos de persuasão e dissuasão), não se pode afirmar o mesmo quanto ao que ele entende por amor – não pode alguém praticar a política por amor à humanidade, à pátria, à justiça, à paz? Ou este amor amplo ou abstrato não conta? Se ele “não vale”, então a teologia da libertação estava errada... E os pentecostais não católicos acertaram a mão: sua política não foi racionalmente clamar pela consciência de classe e contra as injustiças, forjando mobilização social, mas oferecer afetividade e acolhida (sincera ou não, conforme cada caso) em comunidades de pertença e práticas de adoração a que agregaram a esperança típica da teologia da prosperidade, que é mais uma teoria econômica do mercado da fé do que uma filosofia acerca do transcendental. Daí para o reforço de projetos de poder à direita, baseado em fundamentalismo fajuto, foi um passo que, agora, está sendo difícil reverter, mas que precisa ser revertido, se não em nome da fé (que cada um tem a sua ou não tem nenhuma), em nome da esperança e do amor, seja este o que for, seja aquela a que vier.
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