A magia da escrita e da leitura
- Valdemir Pires
- 9 de jul. de 2024
- 3 min de leitura

É comum ouvir ou ler a afirmativa de que se viaja ao ler. Mas quando se pensa em seu significado, pergunta-se: “Como se viaja com um livro nas mãos, se quem lê não está diante de veredas, paisagens, pessoas, acontecimentos, sons, cheiros?” O leitor habitual, porém, sabe como funciona, pela experiência que tem, tanto que seu hábito se deve ao prazer que sente nas viagens que faz através das páginas: para ele, a leitura jamais é uma obrigação a rechaçar ou um incômodo a evitar, como é para os não-leitores ou leitores compulsórios.
Embora sabendo, na prática, como a coisa funciona, nem sempre o leitor consegue compreendê-la em seus fundamentos. Para ele, a viagem imaginária proporcionada pela literatura parece magia, encanto ou feitiço. O que não deixa de ser. Mas como o escritor faz com que o fenômeno aconteça, como ele proporciona este tipo de vivência que o manejo do alfabeto e da gramática tornaram possíveis?
Sempre procurei uma resposta a esta pergunta. Encontrei várias, mas a melhor que li, até hoje é esta, oferecida por Henri Bergson, numa palestra proferida em 1916 (A alma e o corpo):
...a arte do escritor consiste sobretudo em nos fazer esquecer que ele emprega palavras. A harmonia que ele busca é uma certa correspondência entre as idas e vindas do seu espírito e as de seu discurso, correspondência tão perfeita que, levadas pelas frases, as ondulações de seu pensamento se comunicam ao nosso e, então, cada uma das palavras, tomadas individualmente, não mais importa; há somente o sentido movente que atravessa as palavras, somente dois espíritos que parecem vibrar diretamente, sem intermediário, em uníssono. O ritmo da palavra não tem, pois, outro objetivo além de reproduzir o ritmo do pensamento...
Lendo isso, que é quase nada perto do conjunto do pensamento de Bergson, creio compreender o porquê de ele, um filósofo, ter sido laureado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1927, “em reconhecimento às suas ideias ricas e vitalizantes e à habilidade brilhante com que foram apresentadas”; e também porque Proust foi por ele influenciado, Em busca do tempo perdido sendo prova incontestável.
Raptar o leitor e levá-lo a um passeio, sem que ele se dê conta de que o veículo utilizado é uma porção de caracteres alinhados numa folha de papel (ou numa tela de computador) não é magia? Magia feita com dois ingredientes: pensamento (razão) e sentimento (sensibilidade), alinhados pela imaginação. Processados pela mente que, para Bergson, é mais do que o cérebro, já que este o filósofo francês entende como sendo “um órgão de pantomina. Sua função é mimetizar a vida do espírito e as situações exteriores a que o espírito deve se adaptar”; é “o ponto de inserção do espírito na matéria”; “não é o órgão da consciência, do pensamento ou do sentimento, mas de atenção à vida”. Ou seja: “há mais na consciência humana do que no cérebro correspondente”: “o espírito ultrapassa o cérebro”, é ele o mágico da literatura.
Bergson não é uma das influências de Italo Calvino, mas o grande escritor italiano, ao falar de seu processo criativo, mais de uma vez salientou a importância que atribui à imagem. Em Seis propostas para o próximo milênio, no ensaio Visibilidade, ele revela:
A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é (...) uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em termos discursivos ou conceituais. (...) ...ponho-me a desenvolvê-la numa história...Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. (...) ...chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar sentido ao desenrolar da história... (...) ...a partir do momento em que começo a pôr o preto no branco, é a palavra escrita que conta: à busca de um equivalente da imagem visual se sucede o desenvolvimento coerente da imposição estilística inicial, até que pouco a pouco a escrita se torna a dona do campo. Ela é que irá guiar a narrativa na direção em que a expressão verbal flui com mais felicidade, não restando à imaginação visual senão seguir a atrás.
Notável a coerência entre uma teoria e uma prática, num campo fascinante (o do ler e escrever) dos fazeres humanos, não é?
Percebendo tais coisas, acompanhando estes argumentos de dois gigantes da espécie humana, não sobrevém uma vontade irrefreável de imediatamente pegar um bom livro e iniciar viagem?
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